Não fuja da dor

06:53

Semana passada eu peguei uma gripe muito forte e fiquei mal por alguns dias. Certa manhã enquanto o Tijs trabalhava no escritório dele (como ele trabalha em casa, o escritório dele fica ao lado do nosso quarto) e ele estava me ouvindo "brigar" com o meu nariz que não parava de escorrer. Quando ele finalmente levantou da cadeira dele para fazer uma piadinha sobre o quanto eu estava "ranhenta", ficou parado na porta do nosso quarto com um uma cara de quem não estava entendendo nada. Sentada na nossa cama, lá estava eu com lágrimas nos olhos.
Hesitante, ele senta do meu lado e pergunta:
"O que aconteceu?"
Engasgada pelo choro e com a voz meio estrangulada eu respondo:
"Eu estava ouvindo essa música e..." E eu só consigo responder até aí porque os soluços tomam conta e as lágrimas já não me deixam mais falar. Com a cabeça encostada no peito dele e aquecida pelos seus braços apertados ao meu redor, eu deixo a dor vazar, a ferida ser aberta e mais uma vez sangrar.



Tudo começou com um exercício que eu precisava fazer para o meu curso de Holandês em que eu tinha que ouvir uma música e responder algumas questões para testar a minha compreensão da letra. Eu tinha que também pesquisar um pouco sobre a compositora.
O nome da música é "Dat ik je mis" (Algo como "eu sinto a sua falta") que a cantora e compositora Maaike Ouboter escreveu sobre o seu luto pela morte dos seus pais em um acidente.


Durante um velório você recebe muitas palavras de conforto, mas você ouve também muita bobagem. Pessoas sem tato nenhum tentam te confortar, mas acabam falando tanta asneira que você tem vontade que aquela pessoa suma da sua frente numa nuvem de fumaça. Eu lembro que logo no início do velório da minha mãe uma pessoa veio "me consolar" e me disse:
"Kelly, eu tenho mais de 40 anos de idade e perdi minha mãe quando eu era muito pequena. Eu posso te falar com toda a certeza, essa dor nunca vai desaparecer. É uma dor que você vai carregar pelo resto da sua vida."

Eu coloquei esse comentário na lista das piores asneiras que eu ouvi naqueles dois dias de velório. O tempo passou, eu cresci, mudei, adquiri mais experiência e aquele comentário saiu da minha lista negra e passou para a minha lista de maiores verdades que eu já ouvi. No dia 22 de maio desse ano completaram-se 17 anos da última vez que eu ouvi minha mãe falar meu nome. Considerando que eu tinha 16 anos quando ela partiu, agora vivi mais tempo sem ela do que com ela. Não sei explicar, mas é como se fosse mais um marco ultrapassado na minha caminhada de luto. A partir de agora, minha experiência sem uma das pessoas mais importantes da minha vida é mais longa do que com ela. Isso diminui a dor? De forma alguma.



Dor. Você já parou para pensar em tudo o que fazemos para fugir dela? Ninguém quer sentir dor. Usamos todo e qualquer artifício para nos anestesiarmos. Eu posso citar alguns que eu uso: livros com final feliz, maratonas de seriado, dormir.
Mas a dor é inevitável. Ela faz parte da vida, quer queiramos ou não.

Por muito tempo eu tentei sufocar o meu luto por pensar que era ridículo que, mesmo com o passar do tempo, eu ainda sentisse tanta dor. Pensava que a dor TERIA que amenizar e que eu era fraca demais por me deixar abater assim depois de tanto tempo.

Quanta bobagem!



A dor não é para ser evitada, não. É para ser sentida e vivida. Há que se beber do cálice todo, até a última gota. Só assim poderemos sair do outro lado vivos. Não posso dizer que saímos do outro lado felizes, inteiros, completos. Saímos em paz, leves e com os pés no chão.

Através da dor eu lembro que sou gente, que amo, que preciso olhar o mundo com mais graça, que não sou perfeita, que preciso dos outros, que preciso de Deus. A dor me ensina, me educa, me dá limites e ao mesmo tempo os amplia.



Então, vez ou outra, eu deixo a ferida se abrir de novo e aquela gota de sangue escorrer. Choro pela falta, pelo que nunca será vivido. Deixo as lágrimas correrem livres, sem restrição alguma. A arte de sobreviver o luto não está em evitá-lo, mas sim em vivê-lo na sua plenitude. Encontro paz ao colocar a dor em seu lugar e quando as lágrimas cessam e eu finalmente posso respirar fundo, ainda em meio aos soluços, sinto paz, renasço e sigo em frente.



Hoje eu percebo que a dor faz parte de quem eu sou, faz parte da minha vida e corre pelas minhas veias. Isso não é necessariamente ruim, não. Acredito que isso me faz andar com os pés no chão, me ajuda a dar mais valor ao que realmente é importante na vida, me faz amar ainda mais a Deus e experimentar a Sua graça sobre a minha vida.

Não vou fugir. Não vou me anestesiar.
Vou beber desse cálice todo.
Essa dor é minha, foi Deus quem me deu.
Hoje eu choro e deixo-a tomar conta.
Amanhã prosseguirei em paz.




Dat Ik Je Mis - Maaike Ouboter


"Às vezes eu me assusto com o quanto eu pareço com você

Meus sorriso, minhas lágrimas,

Meu amor, minhas experiências,

Eu sinto muito por tudo

Vem me ajudar e me liberta

E me deixe ir

Eu posso seguir sozinha

Mas me abrace forte, se for necessário

Em pensamentos

E eu te encontro em tudo ao meu redor

Mesmo que às vezes eu pense que é melhor assim

Não consigo evitar

Às vezes eu sinto a sua falta."


 

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